A compra da Wabco pelo Grupo ZF foi um dos maiores investimentos já realizados pela companhia nos últimos meses, na ordem de 7 bilhões de euros (cerca de R$ 46 bilhões). Nesta entrevista exclusiva ao Estradão, o presidente da ZF na América do Sul desde fevereiro de 2019, Carlos Delich, fala como foi o processo e avalia que o setor de veículos comerciais terá muitos benefícios do ponto de vista tecnológico com essa aquisição. Ele adianta que o maior deles será o desenvolvimento de veículos comerciais elétricos e autônomos.
O executivo tem vasta experiência no setor automotivo. Ingressou no Grupo ZF em 2001 na então unidade industrial da Sachs, na Argentina. O que lhe garantiu conhecimento e condições para comandar a operação na região.
Sistemas para dar suporte ao motorista
Delich revela que a ZF é uma entusiasta dos veículos autônomos, mas acredita que essa tecnologia ainda não seja totalmente acessível. “Acredito que em 2030 é que vamos ver veículos autônomos que realmente poderemos comprar. Nossa realidade atual está mais próxima do desenvolvimento de sistemas que possam dar suporte aos motoristas.
Publicidade
Ainda sobre tecnologias, o executivo comemora a boa aceitação da transmissão Traxon. Essa caixa é a mais moderna do mercado, segundo a marca, e está presente nos novos caminhões DAF XF e VW Meteor. Delich adianta que a caixa já está sendo testada em ônibus. O chefe da ZF na região diz que é uma tendência estender a inteligência da Traxon para veículos comerciais menores, como os caminhões semipesados.
O executivo também disse que o papel do Brasil nos negócios da ZF é tão importante como os demais mercados. As nove divisões instaladas no País são as mesmas presentes no restante do mundo. Delich analisa as consequências da imprevisibilidade dos países da América Latina e suas sequentes crises econômicas: “A situação na região é diferente dos EUA e da Europa. Na visão do presidente da ZF, a América do Sul sempre teve esse tipo de situação. “Isso atrapalha investimentos e estratégias no médio prazo, mas considero a situação que temos na Argentina mais difícil do que a do Brasil”, conclui.
Aquisição da Wabco
Qual é a importância da compra da Wabco para os negócios da ZF e para o fortalecimento da marca?
Lembramos aqui o momento que a ZF decidiu deixar de ser apenas um fornecedor de componentes mecânicos para se tornar um fornecedor de sistemas completos e inteligentes para nossos clientes. Esse momento ocorreu há cinco anos, quando a ZF comprou a TRW. Isso trouxe um resultado muito positivo, com sistemas de freios, sistemas de direção e vários outros componentes inteligentes ligados à segurança ativa e passiva que são o futuro dos veículos. Agora, a situação se repete nos veículos pesados com a aquisição da Wabco. Essa aquisição é muito importante para a ZF no campo dos veículos comerciais. Eu posso fazer esse paralelo e comparar com o que houve com a TRW.
Essa aquisição fortalecerá a presença da marca em pesados? Trará componentes que não eram existentes no portfólio da ZF?
Sim, para poder complementar as partes não existentes na ZF. Estou falando de controle de freios, sistemas de direção, controle de suspensões. A ZF tinha um negócio pequeno nessas áreas. Se fossemos desenvolver todo esse portfólio iria demorar muito. A alternativa foi adquirir a Wabco. Normalmente, quando se adquire uma empresa, há componentes similares que têm que ser descartado de uma das companhias. No caso da ZF e Wabco isso não existe porque os componentes se complementam.
Fortalecer a ZF
Quando se fala em fortalecimento da marca, isso se trata apenas do Brasil ou de outros mercados também?
Para fortalecer a presença da ZF em todo o mundo. E isso inclui a América do Sul.
Como a ZF está se equilibrando para encarar essa crise que surgiu logo após a aquisição da Wabco?
O custo foi consideravelmente alto (7 bilhões de euros), mas foi uma decisão que a ZF tomou há muito tempo. Como a ZF iria crescer no mercado de veículos elétricos e autônomos? A decisão foi optar pela empresa. A situação com o novo coronavírus afetou a todos, mas a ZF é uma empresa de 100 anos. Por isso, não tomamos decisões que podem ser afetadas a um curto prazo. Além disso, optamos pela compra antes da pandemia.
ZF na América do Sul
Qual o papel do Brasil para os negócios da ZF na América do Sul? Quanto a região representou no faturamento em 2019?
Estamos vivendo uma situação em que o valor do câmbio é considerável. No passado chegamos a ter 8% de participação. Hoje diminuiu, mas não reduziu a nossa posição estratégica. Pois os mesmos clientes que temos em nível global temos na América do Sul. Por isso estamos no Brasil. Aqui temos nove divisões. São as mesmas que estão em todo o mundo.
O alto custo logístico e a imprevisibilidade atrapalham a estratégia da ZF na América do Sul?
A situação na região é diferente dos EUA e da Europa. A Argentina tem picos ruins na economia. Isso não é algo novo. Toda América do Sul sempre teve esse tipo de situação. E isso atrapalha investimentos e estratégias no médio prazo. Considero a situação que temos na Argentina mais difícil do que a do Brasil. A Argentina tem problema de legislação e problemas políticos. Além disso, o coronavírus impactou mais a economia argentina do que a brasileira. A posição mais complicada para os executivos que estão à frente de empresas como a ZF no continente sul-americano é explicar para as matrizes as situações que enfrentamos na região. Por isso temos que trabalhar mais a curto prazo.
Mercado brasileiro
O que o mercado brasileiro pode esperar dos próximos desenvolvimentos da ZF?
Somos fornecedores. Oferecemos tecnologias às montadoras e elas decidem se vão comprar essas tecnologias ou não. As montadoras dependem das necessidades das cidades, dos governos. Estamos fornecendo, por exemplo, eixos elétricos para a Colômbia. A ZF está aberta a esse tipo de necessidade. Cobrimos o mercado com tecnologias elétricas, como o sistema elétrico de eixos (Cetrax) e o sistema que que leva energia para as rodas (Axtrax). Já estamos trabalhando com isso, mas dependemos dos governos, dos municípios e das montadoras para fornecer essas tecnologias ao mercado. A nacionalização desses componentes e sistemas ainda está distante de ocorrer por causa do baixo volume.
Ou seja, a ZF estará pronta para oferecer esses produtos quando o Brasil tiver iniciativas mais maduras na área de mobilidade?
A Colômbia está demandando essas iniciativas. Dependerá de uma situação simplesmente financeira. A ZF sempre está em busca da nacionalização. Quando decidimos trabalhar com a Traxon, em seguida veio a pandemia, mas não voltamos atrás. Continuamos com a produção dessa transmissão no Brasil.
Traxon
Muitas melhorias nos caminhões DAF vieram da caixa Traxon. A leitura de 2 km do veículo que estiver à frente é uma delas. Essa caixa é a mais moderna do mercado atualmente. O que a Traxon vai trazer de tendência e tecnologia para o Brasil?
O mais importante já fizemos. Essa caixa, que pode ser equipada em caminhões e ônibus, contribui para a redução do consumo de diesel. A redução de diesel pode chegar até 6%, um valor interessante. Há alguns pontos adicionais muito interessantes. De acordo com o GPS, é possível saber se terá subida ou descida à frente e acionar um modo mais econômico de condução. Estamos contentes que a VW Caminhões e DAF aceitaram essa tecnologia.
A Traxon estará em veículos menores como os semipesados?
A Traxon pode ser aplicada em veículos menores, mas a ZF tem várias transmissões como alternativas. Um exemplo é a automática Ecolife para ônibus que também pode ser utilizada em caminhões de lixo. Muito silenciosa. Ela já vem sendo utilizada em todo o mundo e também no Brasil. Já estamos fazendo os primeiros testes com ônibus com a Traxon. Mas não podemos revelar mais detalhes. Temos também a Powerline de 8 velocidades derivada de automóveis. Ela é menor e pode ser estendida para ônibus e caminhões menores. Mas para que ela seja produzida no Brasil, dependerá dos volumes.
Tecnologias
Como a ZF está trabalhando com a tecnologia autônoma? O Brasil estará evoluído para ter essa tecnologia nos próximos anos?
Somos demasiadamente entusiastas dos veículos autônomos. Falamos sobre essa tendência há pelo menos quatro ou cinco anos. Mas ela ainda não é acessível. Acredito que em 2030 é que vamos ver veículos autônomos que realmente poderemos comprar.
Qual é a realidade atual?
Nossa realidade atual está mais próxima de desenvolver sistemas que possam dar suporte aos motoristas. Mais do que a tecnologia por si só e o conforto que ela traz, é importante salientar que há uma necessidade econômica nos veículos comerciais. Motoristas que trabalham descansados fazem melhor o seu serviço. E para que a mercadoria chegue a tempo, a segurança é um aspecto importante. Então, nesse caso, a condução autônoma deve ser pensada de modo a dar suporte a tudo isso. Se você viajar para Bruxelas no próximo ano já será possível ver ônibus autônomos com tecnologia ZF. Mas esses veículos vão trabalhar em ambiente confinado, no aeroporto. Autonomia de nível 2 já existe e, inclusive, aqui no Brasil. Em espaços restritos não tenho dúvidas de que a tecnologia vai se desenvolver rapidamente. Com a aquisição da Wabco, teremos todos os componentes para oferecer aos clientes soluções mais avançadas.
Tendências
Qual é a tendência tecnológica que veremos nos caminhões e ônibus em breve? O que as montadoras buscam?
A eletrificação em caminhões urbanos e ônibus. E isso pode se tornar uma necessidade grande em um curto prazo. Para isso, temos o Cetrax. É um motor elétrico ideal para o transporte dentro das cidades. E o Axtrax, que faz os motores girarem em cada roda. Essa tecnologia diminui o nível de ruído e de poluição.
Com a VWCO lançando o seu caminhão elétrico, acredita que essa tecnologia pode crescer?
Sim. Em Londres os ônibus elétricos têm tecnologia ZF. O que quero dizer é que temos as tecnologias disponíveis. E para equipar veículos com essas tecnologias só dependemos das diretrizes dos governos e dos clientes em obtê-las.
Fornecedores
A ZF está enfrentando problemas com fornecedores?
Cortamos todos os gastos que não eram extremamente necessários durante essa crise. E, como alguns fornecedores tiveram problemas, pudemos ajudá-los. Essa ajuda deve ser contínua. Nós tivemos um fornecedor com problema de entrega. Por isso, mandamos nossos funcionários para ajudar esse fornecedor por três meses. No Brasil, às vezes, é necessário que os fornecedores trabalhem aos sábados ou domingos. Isso não ocorre em outras partes do mundo.
Qual é a dificuldade de criar um parque de fornecedores robusto aqui no Brasil?
Estamos vendo uma situação complicada com empresas indo embora. Isso é muito ruim, pois passamos a depender de importação. Poucos foram embora, mas isso não é uma situação boa para nós. Temos que trazer mais fornecedores e fortalecer a localização. Neste momento temos um intercâmbio muito bom com a Argentina. Temos unidades de negócios na Argentina, uma na Colômbia, além do centro logístico de aftermarket em Itú, no interior de São Paulo. Na Argentina fazemos amortecedores para uma grande quantidade de caminhões. A situação na Argentina está difícil, mas ainda temos oportunidades na área agrícola. Estamos fazendo o impossível para fazer com que os fornecedores se fortaleçam.
A ZF está trabalhando no fortalecimento dos fornecedores?
Se formos importar todos os componentes, não vale a pena ter fábrica no Brasil. A fortaleza nossa é ter uma quantidade de fornecedores aqui para que possamos desenvolver aqui. A ZF não quer fazer CKD (montagem de componentes importados) aqui. Queremos ter a maior quantidade de fornecedores na região. No caso da transmissão Traxon, já temos 57% de fornecedores localizados. Com esse esforço podemos ter um volume bem maior sendo trabalhado no País e equipando novos veículos.
Parcerias com startups
Você acredita que é uma tendência fazer parcerias com startups no setor de caminhões? O que pensa sobre a ligação com essas empresas a importância de investir nessas startups?
Já tive a responsabilidade de fabricar amortecedores em todas as américas. E isso nos levou a fazer parceria com uma startup. A velocidade com que grandes empresas se movem é muito menor do que em uma startup. Mas estas empresas, por outro lado, conseguem tomar decisões muito mais rápidas. A combinação de empresas grandes com startups deve continuar crescendo em função da velocidade com que as coisas podem ser feitas. Neste momento estamos trabalhando com startups de vários locais do Brasil e da Califórnia, nos Estados Unidos.