Poucos nomes do setor de caminhões têm uma trajetória tão consagrada como Roberto Leoncini. Com mais de três décadas de experiência na área, ele começou a carreira na Scania, onde ficou por 26 anos e chegou à liderança da operação comercial no Brasil. Depois, assumiu a vice-presidência de vendas, marketing e pós-vendas da Mercedes-Benz, cargo que ocupou por dez anos.
Aos 60 anos, Leoncini atua como conselheiro consultivo da Mercedes-Benz do Brasil e da divisão de comércio do Grupo Águia Branca. Além disso, é mentor de executivos do setor. Nessa nova fase, ele diz que o maior desafio é transformar o conhecimento acumulado em apoio estratégico. Assim, sua meta é ajudar empresas e profissionais a se adaptarem às transformações da logística e à transição tecnológica.
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Com seu tom direto e olhar amplo, Leoncini defende que o transporte brasileiro precisa de mais governança, comunicação e profissionalização. Mas sua retórica está longe de ser pessimista. Para ele, o setor continua sendo um dos pilares da economia e tem muito potencial para crescer. “Entre 60% e 70% de tudo o que se consome no Brasil passa por um caminhão. Mas o setor ainda não aprendeu a mostrar sua importância”, diz.
Em entrevista ao Estradão, o executivo fala sobre o futuro do setor de transporte, bem como de sustentabilidade, renovação de frota, etc.
Governança e sucessão familiar
O sr. acompanhou a evolução das transportadoras no Brasil e fala muito sobre sucessão. Como avalia o avanço desse processo?
Já conheço a terceira geração (de executivos) de várias transportadoras. Vi empresas crescerem e outras desaparecerem por não conseguirem resolver a sucessão. O maior problema do setor é justamente a falta de governança. As transportadoras nasceram com a mentalidade do dono. Ou seja, aquele que compra bem, usa o caminhão e o vende melhor. Esse modelo está se esgotando. As novas gerações estão percebendo que é preciso montar estruturas profissionais, com executivos de finanças e operações, além de conselhos ativos. Isso é maturidade empresarial e será cada vez mais necessário nos próximos anos.

Setor 'não sabe se vender'
Por que a imagem do setor de transporte ainda é negativa?
Entre 60% e 70% de tudo que é consumido no Brasil é transportado por caminhão. Mesmo assim, o setor nunca soube se vender. Quando se fala em transporte de cargas, o cidadão pensa em congestionamento, caminhão quebrado etc. É injusto, mas é a realidade. Essa falta de comunicação fez com que o transporte deixasse de atrair os jovens. Os motoristas envelheceram e os novos talentos não se interessam. É um problema global. Mas aqui é mais grave, porque nunca houve uma política de valorização da profissão nem uma narrativa positiva sobre o papel do transporte, do caminhão e do caminhoneiro.
O transporte é um setor que sempre trabalhou muito, mas se comunicou pouco. As empresas focaram em operar, entregar e resolver problemas. Enquanto o transporte não for percebido como carreira, vai continuar faltando gente. Há vagas, mas falta atratividade. O jovem não se enxerga trabalhando numa transportadora. E isso começa na base, com a falta de cuidado histórico com o motorista, uma profissão que, por muito tempo, foi desvalorizada, mal remunerada e mal tratada nas estradas.
O sr. crê que a falta de cuidado com o motorista é uma das causas da crise de mão de obra?
Sim. O motorista foi historicamente maltratado pela polícia, empresas, postos de combustível e até pela sociedade. Isso gerou uma mágoa que atravessa gerações. Há profissionais que preferem trabalhar em mineração ou plataformas offshore, exemplos de profissões que, assim como os caminhoneiros, ficam muitos dias distante de casa. Porém, se sentem mais respeitados do que se dirigissem um caminhão.
Além disso, o processo de formação não evoluiu. O Brasil ainda forma motoristas como em 1950. Todavia, atualmente temos muitos recursos tecnológicos, como simuladores (de direção) que poderíamos usar. É possível modernizar o processo sem perder rigor. Mas isso exige coordenação entre governo, empresas e outras entidades.
Risco de apagão logístico e falta de planejamento
Há risco de um apagão logístico no Brasil por falta de motoristas?
Não vejo um apagão total, mas podemos enfrentar um estreitamento logístico. Faltam motoristas e sobra ineficiência. Um caminhão passa um terço do tempo carregando, outro terço descarregando e o restante, parado. Ou seja, isso é um enorme desperdício. Então, como há uma frota ociosa não vejo que seja possível ocorrer um apagão.
Além disso, a logística brasileira é muito flexível, com excesso de oferta. O dia em que ficar mais ajustada como ocorre na Europa, onde não há folga de caminhões, aí, sim, o risco será real.
Frota envelhecida e entraves estruturais
O sr. repete sempre que a idade média da frota é um problema para o País. O que precisa mudar?
Temos mais de meio milhão de caminhões com mais de 25 anos de uso em circulação. Isso, além de ser um problema de segurança e eficiência, é também de produtividade. Enquanto não houver fiscalização e estímulo à renovação (da frota), esses veículos continuarão rodando, emitindo mais (poluentes) e oferecendo risco.
O grande erro é tratar isso como um problema social. Ou seja, “não posso tirar o caminhão do autônomo porque ele vive disso”. É claro que há um impacto social, mas também há ineficiência econômica. Se criarmos mecanismos que deem destino aos veículos antigos e alternativas para os motoristas, todos ganham. O que não dá é para fingir que o problema não existe.
Indústria sob pressão e ansiedade dos novos executivos
Como o sr. avalia o momento da indústria de caminhões no Brasil?
A indústria de veículos comerciais vive um dos períodos mais desafiadores da história. Ela precisa investir ao mesmo tempo no desenvolvimento de cabines mais aerodinâmicas, novas normas de reduzir as emissões, motores Euro 7, sistemas de segurança, eletrificação e hidrogênio, por exemplo. Em outras palavras, tudo isso com o mesmo orçamento de quando só se investia em cabines e motores a diesel. E isso é desafiador.
Sobretudo, quando o mercado desacelera, a reação é cortar custos e rever estruturas. Todavia, agora a pressão é global. A Europa enfrenta crise, os Estados Unidos também têm desafios importantes a vencer. O Brasil já esteve pior. Houve época em que vendíamos 40 mil caminhões por ano. Agora, devemos fechar 2025 com mais de 100 mil caminhões emplacados. Mesmo com queda, isso não é ruim.
Transição energética e realidade brasileira
Como o sr. avalia o processo de transição energética no setor de transporte pesado?
A eletrificação é um caminho sem volta, mas o Brasil tem particularidades. Mesmo na Europa, que investe pesado nesse processo, faltam pontos públicos de recarga. Aqui, com as longas distâncias e infraestrutura precária, o desafio é ainda maior. Por isso, acredito em uma matriz energética diversificada.
Ou seja, motores a combustão com hidrogênio, biometano, HVO e elétricos convivendo. O biometano é especialmente promissor, por causa da produção de biomassa no agronegócio. Já a célula a hidrogênio ainda é muito cara. No fim, o transportador terá de lidar com várias tecnologias ao mesmo tempo. O que exigirá gestão e conhecimento.
Como estão as conversas entre governo e indústria para viabilizar essas tecnologias?
Há diálogo. O governo e o BNDES discutem a oferta de linhas de crédito para a compra de caminhões elétricos e a gás, e isso é positivo. O problema é transformar a conversa em prática. Falta capacidade de fazer as coisas acontecerem. Um exemplo é o programa Combustível do Futuro. Ele define a especificação, mas é preciso garantir que o produto chegue ao consumidor com a qualidade certa. Parece simples, mas no Brasil o básico nem sempre é cumprido. Se isso não mudar, haverá problemas para ofertar veículos com alta tecnologia.