Entrevista

Transporte público por ônibus está à beira da falência, diz presidente da NTU

Com prejuízos superiores a R$ 11 bilhões, empresas de transporte público por ônibus pedem um novo marco regulatório para que sobrevivam

Aline Feltrin

25 de mar, 2021 · 17 minutos de leitura.

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Após um ano do começo da pandemia do novo coronavírus, as empresas de transporte público por ônibus já somam prejuízo operacional de R$ 11,75 bilhões. A redução de passageiros por causa das medidas de afastamento fez a demanda cair e, consequentemente, o faturamento. Contudo, o déficit operacional já estava se aprofundando há alguns anos. O motivo está relacionado principalmente a evasão de usuários. De 2013 a 2019 houve uma queda de 26%. Essa redução tem peso significativo porque no Brasil quem paga o custo do transporte é o passageiro.

Presidente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Otávio Vieira da Cunha Filho (acima) defende uma reformulação do marco regulatório do transporte para que haja uma recuperação do sistema e, consequentemente, a oferta de um serviço com mais qualidade para os passageiros.

Em entrevista ao Estradão, Cunha contou que a NTU encaminhou ao governo Federal um projeto que prevê a construção de um novo macro regulatório do transporte. A proposta é que a remuneração às empresas de transporte seja feita pelo serviço prestado e não pela quantidade de passageiros que transportam. "A tarifa passaria a ser uma responsabilidade do poder público que a fixa como quiser, mas paga o custo do serviço realizado", diz. De acordo com o presidente da NTU, essa mudança no sistema evitaria a falência do transporte público por ônibus no Brasil. Confira a entrevista:


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Como o setor está enfrentando a crise gerada pela pandemia?

O setor se financia única e exclusivamente pelo passageiro pagante. E já vinha com alguns desequilíbrios devido à queda de demanda antes da pandemia. A redução da receita frente ao aumento da despesa ficou ainda mais acentuada. Ou seja, a oferta de serviço se manteve em 50%, mas a demanda caiu 80%. Depois as empresas recuperaram o volume ao longo de 2020. Chegamos em dezembro com 86% da oferta de serviço, mas com apenas 60% da demanda. Em fevereiro veio a segunda onda da pandemia e o volume de passageiros despencou novamente. Agora estamos com 50% da demanda e 80% de oferta de serviços.

Neste momento, quais deveriam ser as medidas emergenciais do governo para ajudar o transporte público por ônibus?

A ajuda que o governo Federal deu no ano passado como suspensão dos contratos de trabalho, redução de jornada contribuiu de certa forma, mas foi insuficiente para cobrir o déficit que as empresas operadoras de ônibus tinham. Então, o setor desde março do ano passado vem conseguindo fazer a oferta de serviço à custa de endividamento já que a receita não cobre a despesa.

A ajuda de R$ 4 bilhões prometida pelo governo não chegou?

Nós conversamos  com o Ministério da Economia desde o começo da pandemia até que a equipe se convenceu que o setor foi realmente um dos mais que sofreram com pandemia. E aí o governo sinalizou com a possibilidade de dar uma ajuda. O projeto de lei que previa o auxílio de R$ 4 bilhões foi vetado pelo governo. E até agora não entendemos por que isso aconteceu. Foi uma iniciativa que partiu no Ministério da Economia que entendeu a necessidade de reestruturar o sistema de transporte público porque não conseguia se manter do jeito que estava.


É importante relembrar que esse recurso seria para cobrir parte do déficit e fazer manutenção do serviço. O beneficiário direto é o próprio usuário. A iniciativa privada que opera o transporte público está se endividando para garantir um serviço que é essencial à população. Isso é o pior dos mundos. Somente no Brasil que isso existe.

Com esse auxilio que não veio como fica o grau de endividamento das empresas? Vai aumentar?

Fizemos um levantamento em julho no ano passado que nos mostrou um prejuízo de R$ 3, 7 bilhões. E fizemos algumas projeções para chegar em dezembro com R$ 9 bilhões em prejuízos. Mas esse número foi ultrapassado. De  março do ano passado a fevereiro de 2021, o déficit de operação chegou R$ 11,75 bilhões.

Qual é a projeção para o déficit até dezembro?

Ainda é cedo para ter alguma previsão. Pensávamos que com uma recuperação gradual até meados do ano conseguiríamos um equilíbrio operacional, mas, agora, com essa nova onda da Covid-19 a demanda parou. Vamos esperar o avanço da vacina e  alguma melhora no segundo semestre. Contudo, uma coisa é certa: a demanda jamais vai voltar ao patamar que era. Vai haver necessidade de ônibus andarem com taxa de ocupação mais baixa. E, portanto, precisamos rever a política de transporte público no País. 


E como seria essa mudança?

Há um projeto já encaminhado ao governo Federal de uma construção de um novo marco regulatório do transporte que faz a revisão de todos os contratos e que determina que esse serviço seja remunerado pela produção. A tarifa passa ser uma responsabilidade do poder público e a fixa como quiser, mas paga o custo do serviço realizado. Seja através de recurso próprio do orçamento do município, Estado ou união. Ou seja, através de fundos que venham a ser constituídos para garantir a sustentabilidade do transporte. E o poder público fica responsabilizado pela produção do serviço prestado. Essa mudança precisa ocorrer para que esse serviço não desapareça. Isso porque a iniciativa privada acabará perdendo o interesse em continuar a operar o transporte nesta situação.

Isso significaria mais qualidade e oferta de serviços e renovação da frota?

Essa é a solução definitiva para melhorar a qualidade do transporte para o usuário ter acesso a um serviço de transporte  de excelente qualidade a um preço que cabe no bolso dele  porque a tarifa passa a ser decisão política. Hoje as empresas ficam em cima do prefeito para poder equilibrar as contas. E é isso que deixa o setor muito mal visto e mal compreendido pela sociedade. As pessoas acham que empresários estão todos os dias pedindo aumento de tarifa para ter mais lucro.  Quando, na verdade, estão trabalhando no prejuízo. O problema é que o serviço não é de boa qualidade. Mas está presente todos os dias na rua. Faça chuva ou sol.


Está havendo hoje uma acomodação das autoridades que não se preocupam com a qualidade do transporte público. Afinal, ele está funcionando e atendendo. E quando tem reclamação, é sempre contra a operadora de transporte. A população deveria cobrar dos prefeitos um serviço de qualidade. São 2.901 municípios que têm transporte público com licitação, mas há contratos regulares que não são cumpridos. Então esse é um problema que tem que acabar no País e o novo marco regulatório ajudaria nisso.

Esse marco legal é uma causa antiga do setor ou é algo que surgiu durante a pandemia?

O transporte público no Brasil já existe há mais de 60 anos e incialmente com bondes, depois para lotações de ônibus. Desde a época de lotações tinha certo equilíbrio econômico na atividade porque tinha bastante demanda.  E até meados dos anos 90 o serviço era mantido pelo passageiro transportado porque havia demanda suficiente e em crescimento. O serviço era rentável e atrativo para a iniciativa privada prestar e se sustentava porque tinha produtividade alta. De 1995 em diante, a demanda começou a cair, mas era pouco e havia ainda como conseguir equilíbrio ajustando a oferta com a demanda.

No início dos anos 2000 em diante as cidades começaram a ter congestionamentos e os ônibus tinham alta performance e a velocidade era de 25 km hora. Havia bom aproveitamento do equipamento porque não tinha congestionamento. Mas quando o trânsito foi aumentando cresceu o custo. Hoje os ônibus andam a 13 km por hora. São necessários mais ônibus para fazer o mesmo serviço de antes. A necessidade de mais veículos e de aumentar a mão de obra fez encarecer a tarifa. E isso promoveu a evasão de passageiros.


Esse fenômeno se agravou muito porque os ônibus rodam menos hoje e tem custo maior e pouca demanda para pagar o serviço. De 2013 a 2019 o setor perdeu 26% de passageiros. Esse fenômeno se agravou muito porque os ônibus rodam menos hoje e tem custo maior e pouca demanda para pagar o serviço.

Quais foram os impactos dessa evasão na renovação da frota e em tecnologia?

O impacto mais percebido foi a falta de condições em manter equilíbrio econômico do serviço em função de uma queda muito acentuada de demanda e sem condições de ajustar isso. O equilíbrio é geralmente buscado através do aumento da tarifa e até um momento isso foi possível. Mas depois ocorreu a pressão da sociedade para não aumentar e o prefeito não elevava a tarifa por causa da  análise política e não técnica.


Quando não há equilíbrio econômico na atividade você deixa de renovar a frota para poder pagar a conta corrente e ter fluxo de caixa para bancar todas as despesas. Então, o primeiro sintoma foi o envelhecimento da frota que passou a se observar a partir de 2013. Desde então,  a idade de média só vem aumentando. Hoje, está acima de 5 anos, mas o ideal seria de 3,5 anos para ônibus convencionais de 5 anos para os articulados.

Por causa da falta de incapacidade de investir que está sendo agravada pela pandemia essa idade média poderá aumentar ainda mais?

O transporte público está à beira da falência e a sociedade não percebe isso porque continua a ser ofertado. E nesse ponto os empresários têm grande responsabilidade  porque o oferecem com sacrifício e não estão conseguindo sensibilizar o poder público que o serviço está à beira da falência e vai parar. Então quando a gente vai ao governo Federal e pede ajuda, parece que ninguém dá muita bola porque o serviço está funcionando. Se não mudarmos essa equação financeira esse setor vai desaparecer. Pelo menos pela mãos da iniciativa privada.

Esse déficit fez com que a frota encolhesse ao passar do tempo?

O problema do transporte público é a falta de prioridade que não foi dada a ele. Se você observar algumas áreas da cidade onde foram construídas faixas de corredores no canteiro central ou sistema de BRT onde o ônibus têm velocidade comercial e prioridade na via, o serviço tem melhor qualidade e tem regularidade e o custo é mais barato. Hoje você não há demanda, os ônibus estão disputando espaço com os automóveis e com isso o problema se agrava.


O senhor acha necessário aumentar a frota para atender a demanda?

Não há necessidade de aumentar a frota considerando essa queda de demanda que temos hoje. Isso vai depender muito como será a vida daqui para frente. E aí saberemos o patamar que ficaremos.

O senhor acredita que o Brasil terá condições de ter uma frota de ônibus elétricos?

É uma realidade mundial e vamos caminhar pra isso até mesmo porque o petróleo vai acabar. É preciso pensar no ônibus elétrico. Mas não acho que seja o momento do Brasil investir nisso. Primeiro precisamos avançar em melhorias para o transporte público. O ideal é, neste momento, colaborar com meio ambiente com tecnologias mais acessíveis e dentro das condições brasileiras.

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